02 setembro 2005

o pombo velho

Estava a chegar de carro a casa, de noite - estava quase lá. A certa altura detecto no meio da estrada, um pombo velho - podre de velho. Sabem aqueles pombos que já nem com as penas conseguem disfarçar que estão a morrer de velhos? As penas definham como que a avisar a Natureza Climática de que "é tempo deste pombo velho morrer. Deves morrer, pombo velho. O teu tempo acabou-se."; as asas fracassam, mal aguentam o seu próprio peso; o andar é torto, desequilibrado, lento e inconstante. Igualmente, tais são as características do seu coração solitário.

-"É tempo de morreres, velho."

Páro o carro; estaciono-o na berma da estrada, com os faróis de estrada ligados para poder ver com atenção. Aproximo-me lentamente do pombo velho. Ele fixa o olhar em mim, noto que as suas asas estão assentes no chão e não no seu corpo.

-"Estás desamparado, velho. Mal te aguentas em pé."

De seguida fixo o olhar dele - ele nunca teria deixado de me fixar.

-"Este pombo mal respira."

Contemplo o seu frágil corpo. Uma certa ternura aflui em mim. Não deixo de fixar o velho nos olhos. De seguida aproximo a mão lentamente ao pombo e toco-o com o indicador. Ele soçobra o mais ligeiramente, mas mantém a dignidade possível. Este velho é corajoso. Arrasto o meu dedo lentamente pelas suas débeis penas, ao longo da sua estatura, demoradamente. Uma certa calma e paz toma conta de nós os dois, como se ambos tivéssemos simultaneamente notado -como um relâmpago- que ambos partilhávamos o mesmo fado, o mesmo destino negro. Já não erámos quatro níveis de diferença na pirâmide alimentar humana, mas amigos -de ocasião, talvez- mas amigos genuínos, por um momento mais genuínos que os outros amigos. Uma ponte estava feita. Partilhávamos um segredo que toda a gente viria a conhecer quando contemplassem à sua volta em êxtase serena. Alguns, nunca lá chegariam.

Recuo o meu olhar. Agachado na berma da estrada, ao lado, e fora do alcance dos fárois, estava um gato. A pouca luz que vinha dele custou-me e tive que adaptar os olhos ao escuro por longos segundos. Eu conhecia aquele gato, já o tinha visto perto da minha rua - o velho, não o conhecia. Um pouco ao lado do gato estavam umas poucas penas. Eram as penas do pombo, espalhadas por aí.

Fez-se luz na minha cabeça. Antes, estava ali a ocorrer um jogo de assalto do gato ao velho (sabem como são os gatos, gostam de brincar com as suas sofredoras presas, desabilitadas dos golpes - até à morte).

-"A Natureza é impediosa."

Torno a fixar o olhar com o velho.
Eu sei que faço parte desta natureza mas não quero, tenho nojo dela, angustia-me e quero-me afastar dela - respondo.

-"A Natureza tem de ser impiedosa."

Não, não, não, não, não! Não sabia o que fazer. Ao permitir à Natureza seguir SEMPRE o seu curso estaria a encorajá-la? O que é que a natureza fez por mim? Criou-me? Isso faz-me escravo dela? Faz-te escravo dela?

-"Sempre ouvi dizer que os assuntos da Natureza a ela própria são devidos. Tu fazes parte da Natureza."

Quem diz isso de ânimo leve revela uma similar impiedosidade, sim natural, mas também animal! - respondo de volta ao pombo velho.

-"Não deixas de fazer parte da Natureza... e se tu me ajudares, destruirás tudo aquilo por que sofri. Serás a centelha da minha desgraça, contra qual uma vida lutei."

Mas tu vais ser destruído! - respondo já em angústia.

-"Eu valho pouco. A minha dignidade é tudo o que realmente sobra."

... tento esboçar uma frase, interrompo-me. Fico em silêncio, frustrado.

-"Mas não serei destruído por ti. Toma conforto nisso. Serei destruído pela natureza, a minha natureza.... Adeus."

Mantenho-me em silêncio por uns segundos, solto o fixar de olhos que mantínhamos e cabisbaixo, recuo lentamente. Entro no carro e vagarosamente parto. No retrovisor as luzes traseiras iluminariam a vermelho a investida final do gato ao velho. Nunca mais o voltaria o ver. O gato, talvez.